Sobre as músicas do blog... Não devem ser consideradas simples "fundos musicais" para os textos... Foram escolhidas com carinho e apreço, dentre o que há de melhor... São verdadeiras jóias que superam em muito os textos deste humilde escrevinhador... Assim, ao terminar de ler certo texto, se houver música na postagem, termine de ouví-la, retorne, ouça-a novamente se toda atenção foi antes dedicada ao texto... "interromper uma bela música é como interromper uma boa foda... Isso não se faz!..." Por último, se você conhece uma música que, na sua opinião, combina melhor com o texto, não deixe de enviar sua sugestão...

Colecionadores de colas

Música deste post (é bem melhor com música):"Confessin'", gravada inicialmente em 18 de dezembro de 1929 por Thomas "Fats" Waller & His Babies", com créditos de composição a Chris Smith and Sterling Grant, em 1930 essa canção renasceu como "(I'm) Confessin (That I Love You)" com música creditada a Doc Daugherty and Ellis Reynolds e letra de Al Neiburg Doc Daugherty and Ellis Reynolds. Interpretação de Lester Young e Oscar Peterson Trio.


Broken Heart - Jason Torgerson

Colecionadores de colas...
A certa altura, na oficina de nossas vidas, abrimos o armário de ferramentas e notamos que as substituímos por colas... Uma miríade delas, em embalagens de todos os tipos, guardadas e acondicionadas com o cuidado que cada uma exige... Para serem usadas no momento certo, repararem aquilo para o que foram criadas, e eventualmente até serem testadas na reparação de algo novo, ainda sem cola própria...
Observamos que aquela latinha de massa que usávamos para encobrir pequenas trincas, o estojinho de tintas para recobri-las com acabamento perfeito, não mais são abertos há tempos... Já deixamos as trincas aparentes, não nos incomodamos mais em escondê-las, no rosto, nas palavras, no comportamento soturno... Quando muito pincelamos tudo com sofrido e falso sorriso...
Notamos que as ferramentas com que consertávamos, refazíamos, dávamos nova vida, encontram-se num canto, já com teias de aranha, junto com o ânimo para se sair e buscar o novo ante as grandes quedas, quebras, perdas...
Passamos a ter, bem à vista, um frasco maior, com preparado especial, com que tapamos as grandes fendas, buracos que recomendariam troca total, causados pelos desapontamentos, frustrações, desencantos, mentiras, desilusões... Todavia já não nos interessa trazer coisas novas para nossas vidas... Sabemos que se tornarão velhas, desatualizadas, quebrar-se-ão também... Assim, o melhor mesmo é ter-se a cola certa à mão...
Uma caixinha com uma tarja preta, onde guardamos colas cujas finalidades são permitir que se continue a ser aquilo que os outros esperam que sejamos; uma cola para cada parte quebrada: níveis de dopamina, adrenalina, serotonina... Buspirona, clonazepan, lorazepan, bupropiona, fluoxetina, duloxetina, paroxetina, sentralina, oxazepan... Ansiolíticos, antidepressivos...
Um frasco rotulado com uma carinha de caveira sobre duas tíbias cruzadas demonstra o perigo de se utilizar cola ao amor... De efeito instável, gosto amargo, nocivo ao espírito e a alma,  causa dor profunda e quase nunca surte o efeito desejado — amor remediado é amor imprestável, que já não vibra, não alegra, não traz sossego, elimina a paz... Não morre porque é imortal: ninguém esquece um amor...
Discretamente disfarçada em meio ao bazar de colas, uma caixinha sem dizeres abriga sem divisórias os géis lubrificantes, testosterona, bombinhas de Eros e outras colas à sexualidade feminina; ao lado dos viagras, das prostaglandinas e papaverinas para homens... Em vidrinhos sem rótulo, afrodisíacos mil, ecstasy comprado ilegalmente... Todas colas poderosas, hora ou outra necessárias...
Quase nunca utilizada, cuja tampa já emperrou, têm-se a um canto unguento de aspecto pegajoso, que mela as mãos, causa empobrecimento material, destinado a reparar o caráter, a ética, a moral...
De preciosismo sem par, em vidro de cristal, adesivo de grande poder, que une e restaura a transparência dos atos, das ações; quase nunca utilizado por seu alto custo e curta durabilidade...
Abrimos o frasco da poesia para extravasar sentimentos só em devaneios imagináveis, unir desejos e lembranças quebradas, trincadas, e com isso colar o passado, fixar de forma frágil, efêmera, as bases do futuro...
Mais recente, de efeito fluído e inodoro, em embalagem de alta tecnologia, encontramos colas que remendam nossas deficiências ao escrever, fazer contas, calcular e até se relacionar...
E as caixinha, os vidros, os frascos, vão se multiplicando à potência dos anos vividos. Às vezes cedemos um porção a alguém mais jovem, mas nunca funcionam a contento... Fazemos questão de ter nossos próprios preparados: gomas, esparadrapos, fitas isolantes, mordentes, vernizes, adesivos para cada e qualquer situação, em variadas cores e tecnologia, inúmeras serventias... Só nossos... Receitados por médicos, adquiridos no varejo, no atacado da vida, mas só nossos... Afinal, somos ou não, todos, colecionadores de colas (?)...  
 

2 comentários:

  1. Leio-te e vou revirando na mente o meu próprio armário, tentando identificar os meus potes e quais são aqueles que utilizo com mais necessidade e frequência. São tantos remendos, tantos vazios que precisam ser tapados, já que não podem ser ocupados...e a vida segue. Não deixando de colar as esperanças, num ato de desespero, disfarçando o caminhar capenga.
    Aplausos para mais este texto primoroso.
    Quando a angústia aperta, nada melhor que ler-te e colar pedaços de sua poesia na alma.

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    1. Temo que essa força que vens dando aos meus escritos a transforme em mais uma cola... Á qual passarei a recorrer... Eu... Que sempre joguei fora as coisas trincadas... Não consigo me jogar fora!

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