Sobre as músicas do blog... Não devem ser consideradas simples "fundos musicais" para os textos... Foram escolhidas com carinho e apreço, dentre o que há de melhor... São verdadeiras jóias que superam em muito os textos deste humilde escrevinhador... Assim, ao terminar de ler certo texto, se houver música na postagem, termine de ouví-la, retorne, ouça-a novamente se toda atenção foi antes dedicada ao texto... "interromper uma bela música é como interromper uma boa foda... Isso não se faz!..." Por último, se você conhece uma música que, na sua opinião, combina melhor com o texto, não deixe de enviar sua sugestão...

Doce inspiração

Música deste post (é bem melhor com música): "There She Goes", Compositor desconhecido no momento (provavelmente James Moody). Interpretação de James Moody, saxofonista e flautista (1958.






Doce inspiração...


... não se encontra no coração, muito menos vem em forma de canção.... A doce inspiração tem cheiro de mulher amada, tem rosto de mulher resolvida, tem corpo de mulher cobiçada.

Quando se olha nos olhos da mulher e se vê toda a sinceridade, a brotar como os raios do sol em manhãs de primavera, ali se encontra doce inspiração.

A doce inspiração... A doce inspiração brota do beijo da mulher. Que ele seja, da mulher benfazeja, a glória maior de todas que ela carrega ao redor. Sempre preservado para os momentos de grande ternura, infinita beleza, dado com sutil, porém inescusável firmeza, que sustenta com inquestionável nobreza a missão de trazer a inspiração, a doce inspiração, não a amarga, que tal qual vinho se estraga quando se agita num peito que apressado palpita.

O coração da musa inspiradora bate leve, compassadamente, dá-nos a certeza que jamais parará, que ali a inspiração sempre estará, para se entregar ao nosso olhar.

É preciso, com certo afinco, devotar tempo e dedicação para cultivar na mulher a doce inspiração. É preciso enxergá-la como única, sempre e a cada dia, e ter certeza de que ela reconhece seu olhar, sua forma incondicional de amar.

Olhe meu amigo, quando digo incondicional, coloco a expressão da forma mais ampla e irrestrita possível, pois o amor não pode ter limites, ser parametrizado pela razão, cerceado pelos ciúmes. O amor há de ser sempre livre, espontâneo e, acima de tudo, sincero.

Há de se tratá-la com respeito, ser mais do que um amigo do peito, símbolo fálico do amor. Mais um!

Para se enxergar da mulher a doce inspiração é preciso ver além da beleza exterior, avistar a alma contrita pelos desejos e aspirações que, mais do que qualquer coisa, invoca-lhe o bem. E aceitá-la da forma como ela a doa, posto que tal aceitação é caminho seguro à nova inspiração, tão doce, edulcorada, dulcíssima, emostada pela gratidão expressa e sincera, sempre expressa, sempre sincera, eis que da mulher a sensibilidade avisa-a quanto à falsidade, à falta de sinceridade.

Não é preciso que se compre presentes caros, mas que se lembre onde se encontra a doce inspiração, e com humildade e afeição se presenteie a mulher, até com a flor colhida na praça, menos nobre, quase sem graça; o que vale aqui não é a realeza, mas a simples lembrança de onde mora a doce inspiração, que com um olhar se alcança. A doce inspiração... É ela que faz o coração e produz a canção.

Não espere, pois, por um coração, por uma canção, para ter doce inspiração. Disso ela é causa e não consequência.

É, meu amigo, da paixão pela mulher amada, a resplandecer cada segundo, que nasce a doce inspiração. De todo e qualquer tipo... A que vem ao se olhar uma criança, a natureza, qualquer tipo de beleza.

Pois o homem, sem sua bem amada, nada vê e se vê nada observa, é destituído de estesia, é fonte de amarga inspiração, com ela canta tragédia, o sofrimento, a desilusão, não... Não, isso não decorre de doce inspiração.


Em cima do muro




Em cima do muro,,,

Tenho sete filhos. D´uns participo mais de suas vidas, d’outros, nem tanto... Mas sempre estou a ver e ouvir, principalmente este último, situações que se repetem — variações em torno de um mesmo tema (preciso me vigiar melhor, estou a usar esta expressão a todo tempo).

Dentre essas, uma que já se tornou lugar comum, com o endosso das mães, é quando iniciam um novo affaire.

Antes, porém, de prosseguir, é preciso lembrar, quando  falamos de pessoas maduras, digo assim, acima dos trinta anos, que há maior predisposição (ou então rejeição total) à busca de um novo relacionamento quando, por qualquer circunstância, o atual se revela insatisfatório pelas mais diversas razões.

Aí dá-se início a uma busca inconsciente, do tipo “a razão diz não, o coração diz sim”. Ora, é evidente que essas pessoas vivem momentos de indecisão; não raro se encontram ainda em meio a um relacionamento, mas dá-se o que aqui chamei de “busca inconsciente”.

A pessoa se abre, torna-se predisposta a novos relacionamentos e, até mesmo, a aventuras que não chamaria “amorosas”, mas sexuais.

Que se repetem (e aqui vem o cantador), eis que:

Ninguem se engana

quando encontra formosa xana,

da mulher a boa biça,

ou mesmo doce piça,

do homem o instrumento

prá fazer do prazer o momento


E aí, depois de mês, dois ou três, a outra pessoa, porque está dando ou comendo, se vê no direito de “cagar regras” àquela que ainda vive sua indecisão.

“Não pode ficar em cima do muro”, afirmam as mães a incitar as filhas, ou mesmo os filhos: “isso não é coisa de mulher direita!”

Sem brincadeira, essa tomada de posição faz-me lembrar velho pensamento cunhado por Thomas Chandler Haliburton, escritor, juiz e precursor da criação do Canadá, nascido em Windsor, Nova Escócia. Disse ele:



"Every woman is wrong until she cries, and then she is right, instantly" (1)



Se bem que não estou aqui a especificar se o caso é de homem ou mulher, serve, a expressão, para realçar a falta de lógica: ora, quando se está num relacionamento, ou mesmo em fase do seu término, nada é fácil, branco no preto... Diz-se de tudo, faz-se de tudo, a lógica e a razão pouco falam... No amor não há honra, que me digam aqueles que tentaram ser heróis nessa seara.  Tenho visto isto aqui no “escritório” de montão. Tudo é cinzento...

Alguns assumem essa dualidade de situação de forma heróica, com versos verdadeiros, se pretendem bravos e fortes; outros, nem tanto: refugiam-se em subterfúgios, pelas mais diversas razões, normalmente não próprias — a bravura, já disse aqui [Pensamentos, "Alimento à loucura”], é própria dos inconsequentes, raramente nobre —; busca-se não magoar um lado ou outro, deseja-se, e  ao mesmo tempo não, abrir-se mão disso ou daquilo, quer-se dizer e fazer uma coisa, mas disse-se e faz-se outra; a diplomacia não é inerente à condição humana, logo sua ausência  não depõe contra o carente. Não importa aí a instrumentação da dualidade: simulação, mentiras, grandes e rompantes verdades que, de tão verdadeiras, ninguém acredita... Não será isso uma forma de mentira [Pensamentos, Alimento à loucura] ?

Pode-se, com habilidade, dizer-se tão somente verdades para justificar-se qualquer coisa, qualquer procedimento, do mais baixo e reles ao mais altivo. Tomem, por exemplo, a sobrevivência: o quê ela não justifica? É melhor um covarde vivo ou um herói morto? São mentirias para se salvar a vida? Quem somos nós para dizer o que é importante à vida de outrem?

Quando se inicia um novo affaire nessas condições, as dificuldades se multiplicam, e as dúvidas se elevam exponencialmente... Leva tempo, senão anos, voltar-se à normalidade. A menos, é claro, que se tenha assumido o primeiro relacionamento com leviandade, aí tudo se resolve facilmente! Mas se houve amor, filhos, é complicado!...

Ora, ser bom ou boa de cama, sair para jantar, agradar e ter um bom papo, não é atestado, nem mesmo indício de coisa alguma que recomende o progresso da relação à vida do outrem.

Minha filha tem em seu MSN frase que me diverte, principalmente porque sei que convive bem com o marido...

“Viver é difícil, conviver é um inferno!”

Mas é bem por aí... A convivência, fora da cama, é bem diferente: parceiros de cama, se não agradam, despedem-se e... Pronto!

Mas uma vez que se dá início a um “relacionamento estável”, de convívio, do dia-a-dia, as coisas não podem ser assim: não podemos “despedir” o outro por qualquer coisa. Sabemos que, por mais que certa pessoa goste da gente, em certo momento, voluntária ou involuntariamente, ela acabará nos ferindo de algum modo, em algum momento. E aí? O que vamos fazer? Despedirmo-nos como parceiros de cama?

Há, neste caso, de se ter condescendência, tolerância, como dizia um dos meus pares aos seus clientes: “casamento é concessão recíproca, onde um cede aqui e outro concede ali...”

Eu poderia, aqui, abordar diversos aspectos da convivência, do início do relacionamento, etc., mas desviei-me, retorno ao tema para finalizar:

Nesses casos, em que um dos parceiros esta saindo ou recém saído de um relacionamento, tudo é duvidoso para ele. Não tem essa de “ou dá ou desce”. Forçar a barra, nessas circunstâncias, é furo n’água. O que o parceiro, o outro, já bem definido, se é que é ou está, tem que fazer, se realmente gostou do outro, é mostrar sua forma de ser, seu comportamento real, não adianta simular, querer ser aquilo que o outro gosta, porque um dia a máscara cai.

E dar o tempo que o outro precisa para autoconvencer-se da conveniência do relacionamento... Se não se quiser esperar, (olha o cantador:) com os burros vai dar... É melhor levantar âncora logo e tomar seu rumo sem discussão, pois o amor é sentimento egoísta, não aceita conversão em amizade.

Olhem, as pessoas não são bobas, e quando ficam em cima do muro, geralmente têm um motivo para tanto, não digo aquele motivo aproveitador, de querer tirar partido dos dois lados, mas há algo de instintivo que as levam a isso...

Nesses casos, despir-se não das vestes, mas das simulações, que querer ser que não é, e mostrarem-se como realmente são, talvez seja, dentre as ações humanas, aquela que mais seduz, profícua para um bom relacionamento. Afinal, já disse alguém que a maior beleza não é quando se enxerga a nudeza do corpo, mas a nudeza d’alma.

Do mais, seja mais você para conquistar do que para exigir. A conquista é sempre ampla, irrestrita, enquanto a exigência limita-se ao exigido.

Por fim, lembrem-se, se o relacionamento não der certo, antes de criticar o outro, de autocriticarem-se: na aparência, na coerência, no proceder, na forma geral de ser... Às vezes é preciso melhorar para conquistar!

  1 "Toda mulher está errada até ela começar a chorar, então ela se torna certa, instantaneamente.”


 

Fim de ano (Natal e Ano Novo)




Fim de ano (Natal e Ano Novo)

 Todo ano, a essa época, ponho-me a escrever sobre o Natal... E, por extensão lógica, melhor dizer cronológica, sobre o Ano Novo.
        Temo que, de uma forma ou de outra, acabe por escrever sempre a mesma coisa: “só uma outra forma de dizer” — “variações em torno de um mesmo tema”, diria certo amigo pianista...
        Maravilha-me ver pessoas que passaram o ano todo se digladiando, à época do Natal, abrirem os braços e se confraternizarem. Esquecem-se, com bastante facilidade, as lágrimas que fizeram derramar e, com dificuldade recalcitrante, as que derramaram...
        Mas não importa! A confraternização vem e invade o coração de todos... Com sorte até depois do Carnaval... Quando acaba a euforia e retorna a realidade.
        Os confraternizantes¹, então, engalfinham-se na luta feroz pela sobrevivência e inicia-se um novo embate: “Aquele filho da puta!”... “Acabo com ele!”... “Crápula!”... “Mas fodo com ele!”...
        E assim vai, até o fim do ano, quando os sobreviventes, em sublime exercício de confraternização, esquecer-se-ão novamente das liças conspurcantes¹ em que se envolveram a fim de estarem ali, vivos, alegres e felizes.
        E os que não sobreviveram? Ou os que se encontram então capengas, pela prostração da humildade e ausência de imposição de força aos seus semelhantes?
        Bem, esses foram ou são os fracos. Não lhes caberiam, mesmo, perdoar, não há interesse de com eles se confraternizarem; tampouco há de se falar em perdoá-los, eis que nada fizeram que merecesse perdão.
        Enfim, as confraternizações de final de ano, efêmeras, fugazes, são mesmo frutos distorcidos do eudemonismo e epicurismo: perdoa-se ou assim se finge, esquece-se ou assim se simula, não porque esta é a coisa certa a fazer, tampouco porque os confraternizantes¹ mereçam, mas porque nos dá prazer! Desejamos nos sentir melhor e, para isso, quebram-se todos os paradígmas da coerência, da racionalidade. Sentimo-nos, com isso, à imagem e semelhança Dele... O homem, na sua sede de superioridade, não deixou por menos e elucubrou meio de qualificar-se como a imagem e semelhança Dele!
        Acaso o conhecem? Sabem como ele é? Já o viram?
        Não importa! O que importa é que é fim-de-ano, hora de expiar-se os pecados, eliminar-se as desigualdades, a Ele igualar-se. E se não formos à imagem e semelhança Dele, Ele que, com seu Grande Poder, trate de se parecer com nós... Ou seria Nós?
¹ Neologismos não dicionarizados.

Ombro amigo



Ombro amigo

Sobre meus ombros pesa fardo
Que de todo parece achumbado;
No cinza, as desilusões do desejo,
No peso, o que me leva ao fraquejo.

Carrego sobre meus ombros...
Da vida todos os escombros,
Com pontas a perfurar-me o pescoço.
E bem perto te ouço,
Ainda a chamar-me de amigo.

E dizes: “não procures comigo
Aliviar teus desejos!
Não desejo mais teus beijos,
Aliás, nunca os quis”.

“Qual pedaço de giz,
Desgastei-me na lousa do teu corpo,
E hoje não escrevo mais.
Nem amar sou agora capaz!

Não me chames de querida,
És só um ombro amigo!
No bazar da minha vida,
Só mais um artigo”.




"Chorar por alguém que morreu,
não é tão triste 
como chorar por alguém
que se perdeu para sempre,
mas que ainda vive." (ACD).


Poemas doídos

Música deste post (é bem melhor com música): "Prayer", Yuko Ohigashi, interpretação Yuko Ohigashi.




Poemas doídos

Olho-te...
e nada decifro!
Sinto então o aríete
marrar o portagão,
que em meu peito represa
toda emoção,
como se deitá-lo ao chão
trar-me-á à razão.

Finjo-me normal
vendo-te vazia,
destituída da estesia
que outrora luzia
no rosto faceiro,
hoje penamar
que traduz pesar.

E minha mente vaga,
por ceca e meca,
cavouca as ruínas
do meu passado,
dá com cabras-cabriolas
que além de crianças
devoram minhas esperanças.

Mentalmente engalfinho-me
em liças conspurcadas,
cujas razões malfadadas,
eu sei, só trarão
e o pior, sem razão,
poemas doridos
como se tem à mão



Ego sum qui sum

Música deste post (é bem melhor com música): "Kyrie Section of Gregorian Chants", Missa de Angelis, Schola Gregoriana Mediolanensis, Giovanni Vianini, Milano,



 
Num grabato espiritual,
preso pelo grácil fio
de um passado edênico,
onde tolo e ebrifestivo vivi,
repouso meu ser.


Grabatário assim,
atribuo meu presente,
sem remorso, sem juízo,
à mera facticidade.


Vicissitudes não choro,
nem sei se as tive,
não questiono mais
minha condição.


Sigo a abalada,
tal caça ferida,
que busca leito,
para vida ou
para morte.


E do Pintor Maior,
no godê, diluído,
resignado aguardo
a pincelada fatal,
que me fixará à tela final.



.

Que cidade é essa!

Música deste post (é bem melhor com música): ""Menino do Rio", de Caetano Veloso. À falta de uma versão instrumental adequada, vai aqui uma versão "eletrônica" (razoável). Tenho, cá, a versão instrumental.... Mas tá difícil de achar...



          
               Rio...






Que cidade é essa,
que assusta e apavora,
cujo medo acabou
com as noites de outrora ?

Há temor em cada esquina!
Os reluzentes lampiões,
a cidade trocou
por escuros canhões.

Impunes em pequenas mãos ,
enormes cruzadores
não fazem estragos maiores,
que as armas dos menores.

Quem ainda canta na Glória,
no meio da madrugada,
já não se arrisca à pedrada,
mas a morrer por nada.

E o solícito flanelinha
chantageia o casal,
pede uma moedinha
...prá evitar algum mal.

Guarda-carro, guarda-costa,
guarda tudo que se gosta,
enquanto a polícia civil
finge que nada viu.

Coitada de ti cidade querida,
que já não abriga,
não tem mais calor,
vive da morte e da dor.

Coitada de ti cidade querida,
que em linda harmonia,
já cantei em verso e prosa,
pois te conheci
cor-de-rosa !





Para se perder um grande amor

Música deste post (é bem melhor com música): "I'm Confessin' (that I Love You)" (also known as "Confessin'" ou "I'm Confessin'," ou ainda "Confessin' that I Love You")",  é um standard do jazz. A canção foi inicialmente feita com letra diferente como sendo "Lookin' For Another Sweetie," de Chris Smith e Sterling Grant, e gravada por Thomas "Fats" Waller & His Babies, em dezembro de 1929. Em 1930 a música "renasceu" com a nova letra de Al Newburg, desta vez com a música creditadaa Doc Daugherty e Ellis Reynolds. Louis Armstrong fez sua primeira e altamente influente gravação em agosto de 1930 e continuou a tocá-la por toda sua carreira. Aqui ouvimos uma versão de acordo com o texto, meio reticente, uma interpretação do gênio que era Thelonious MOnk... Não pense que as hesitações e "notas fora" são de um aprendiz, mas bem proprias de quem estava apaixonado... Por uma Baroneza... Falo disso na página de jazz.






PARA SE PERDER UM GRANDE AMOR


É preciso ser louco para conquistá-lo

Abandonar toda a sua vida

E se entregar a ele por inteiro

E descobrir que  com ele

Vêm traumas e desilusões,

Mentiras e contradições

Às quais você terá que igualar




Para perder um grande amor

 É preciso, antes, imaginá-lo eterno

Sem dificuldades e sem desencantos

Fingir que o passado não o atinge

Que és diferente de outros tantos

E ir em frente sempre sorrindo

Fingindo que o amor é infindo

Que não vai, aos poucos, diminuindo



Para se perder um grande amor

 É preciso acreditar

Que os abraços serão sempre apertados

Os beijos sempre prolongados

Os sexos de desejo molhados

Que os corpos jamais se enrugarão

As vaginas jamais murcharão

Os membros sempre se intumescerão.


Para se perder um grande amor,

 É preciso primeiro perder a nobreza,

Mergulhar em profunda pobreza,

dar-se tudo o que se tem,

mesmo quando não lhe convém,

Postar-se sem ter o pão,

E pedir emprestado então,

Frente ao ente amado,

Revelar-se flagelado,

Conseguir ser desprezado


 Para se perder um grande amor



Razão para Escrever





           — Quanta sensibilidade!

           Exclamou ironicamente a voz ao ver-me escrever.

           Parei.

           Esperei que saísse e, após fechar a caneta, colei,  sobre tampa e o corpo, um esparadrapo, de forma a selar o traste escrevinhador. Aquela boca não iria se abrir tão cedo para soltar a matraca da pena de ouro.

          E, esquecida, a velha homenagem, porque à época usava-se ganhar canetas de pena de ouro  nas formaturas, repousou sob leve poeira, no fundo da gaveta, anos a fio. 

           Outro dia deparei-me com ela. Resolvi então  que já era tempo de ressuscitá-la; tentei abri-la, mas lá estava a velha bandagem sobre o ouro, a lembrar-me da múmia que produzira. Na época usava-se éter para tirar esparadrapo. Surpreso, descobri que as farmácias já  não o vendem mais.

           Desolado busquei, em meus  alfarrábios, minha velha receita de lança-perfume, que de tão velha quase havia evaporado, decidido a destruí-la Para quê mantê-la já que a matéria prima não existe mais?

            Não pude, porém,   deixar de lembrar os velhos carnavais, que de tão velhos, assim como as  lanças-perfumes, evaporaram: autor de marchinhas já não existe.

          E nem de marchas pra valer. E nem soldados que marcham: hoje voam em helicópteros, caem sobre as presas guiados por computadores.

         Ah! O Computador!

      Que letras perfeitas! Várias fontes, várias impressões, toda correção, no singular e no plural!

       Repouso o velho traste novamente na gaveta, sua tumba .

       Antes, porém, renovo a bandagem, desta vez microporizada, de nylon, não degradável, eterna  —  múmia é para sempre.

       Hoje só escrevo por causa do computador!




Boemia em Tela

Música deste post (é bem melhor com música): "Rondal", de Paulo Vanzolini, interpretação de Valdir Calmon e Orquestra.






Sem ter onde se encostar,
o boêmio foi buscar
na tela a solução.
Prá sufocar a solidão
trocou a mesa do bar
pela da televisão.

 
E agora a história
de novo se repete:
 o boêmio, sem pudor,
apela prá Internet.

 
Continua isolado,
hoje diz-se “deletado”;
pede “help”em “éfe-um”
já não faz mais samba algum!

 
Por isso digo:
ser boêmio hoje em dia
é uma bruta agonia.
Não há mais imaginação!

 
O malandro que tocava,
já não existe mais não,
fez da arma o violão.
— hoje toca "outra" canção.

 
É malandro virtual
Só aparece no carnaval
Usa CD prá conquista
A compor nem se arrisca!




Falência Humana

Música deste post (é bem melhor com música): ""Zorbas" (ou mais comumente a "Dança de Zorba, o Grego") é de Mikis Theodorakis. Ela foi baseada em duas outras canções cretenses tradicionais: "Armenohorianos Syrtos" e"Kritiko Syrtaki", compostas por Giorgis Koutsourelis. A versão apresentada originalmente no filme Zorba, o Grego, em 1964, é esta. Foi gravada pela Orquestra popular de Mikis Theodorakis.Prayer".








Num passe de mágica...

Música deste post (é bem melhor com música):"I Cover the Watefront" de Johnny Green com letra de Edward Heyman, foi inspirada no romance escrito com o mesmo nome por Max Miller, em 1932. Aqui a interpretação é de John Birkes "Dizzy" Gillespie (1917-1993), uma figura maior do jazz e precussor do be-bop junto com Charlie Parker e Thelonious Monk.




Num passe de mágica
 
Num passe de mágica
desmaterializo-me e,
 pela força do desejo,
transporto-me à distância
do seu estar.

Posto-me invisível,
furtivo, colado,
carrapatado em teu costado.

Teço meu cabelo ao seu.
Propositalmente, com volúpia,
esfrego minha barba, arranho-lhe a nuca.

Em lenta descida,
corro meus lábios sobre teu dorso
serpenteio-te com meu corpo,
à altura dos seios,
para tomar-lhe os mamilos.
Beijo-os como se houvera
nunca antes assim feito.

E retrocedo no tempo
porque aquele que queremos
é o que sempre é.

Não me vês,
não me enxergas,
sou só energia que te acerca,
que inexplicavelmente te envolve.

E me sentes. Ah como me sentes!
Trêmula, em direção contraria
teus pelos assumem,
incontido arrepio.

E como maior energia
se sobrevenha,
acabas por sentir o peso do
meu corpo.

E, em erótica genuflexão,

te colocas de joelhos,
de modo a ver o esplendor
do teu próprio sexo,
inexplicavelmente intumescido,
lábios úmidos, escancarados...

Como possuídos por Priapo!
Mas de Afrodite e Dionísio
o filho não se faz presente...

Há tão somente desejos,
  energias circungirando
que se apoderam de ambos,
a milhas de distância...

E traduzem, na mais solene
crueza humana,
as transformações almejadas
pela alma, desejadas pela mente...

Irrefreáveis pelo corpo!